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Published: September 1st 2012
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Ser peregrino é....
Viver um dia de cada vez.
... e colecionar dores diferentes em cada um deles. Acordamos bem cedo no dia 5 de caminhada. As bolsas de gelo e anti-inflamatórios – que, aliás, são bem mais baratos aqui na Espanha do que no Brasil - parecem ter feito efeito e resolvemos seguir adiante de acordo com o que nossos corpos permitissem. O dia se iniciava com um trecho de subida intensa e depois uma descida mais longa e (graças a Deus) menos íngreme, num longo trecho de 29Km. Como nossa situação era incerta, já mapeamos uma possível parada de pernoite anterior 8km antes.
A estratégia de sair bem cedo, num ritmo bom antes de o sol ficar mais forte funcionou bem e avançamos rapidamente. O ponto negativo foi que tão aguardada fonte do Monastério Irache, com torneirinhas servindo água e vinho – isso mesmo, vinho!! - para os sedentos peregrinos, ainda estava fechada quando passamos. Conhecemos algumas pessoas que ficariam ali esperando a fonte abrir (como alguns ali que de fato o fizeram), mas nosso objetivo era outro e resolvemos seguir.
Pouco depois chegamos a Azqueta e paramos para um descanso em um bar. Um simpático senhorzinho que estava por ali começou a nos observar e logo começaram a puxar assunto com ele. Era o
Pablito e a Fá
Ás vezes um simples gesto de um estranho nos transforma e faz com que nossas forças que outrora se esvaiam se multipliquem em energia para seguir o caminho. lendário Pablito. Ele nos chamou para carimbar nossas credenciais e nos presenteou com cajados que ele mesmo faz para peregrinos que escolhe entre as centenas que passam por ali. Além disso, também nos presenteou com vieiras para carregarmos no peito, como um símbolo de proteção ao peregrino. Um pequeno gesto de carinho e solidariedade que nos deu ânimo novo para seguir adiante. Concluímos os 29Km daquele dia embaixo de muito sol, mas com muito otimismo.
Esse otimismo também nos fortaleceu para chegar a Logroño, capital da Rioja, no dia seguinte, fato deliciosamente comemorado com vinho da casa: poucos vinhos podem se comparar com um bom Tempranillo da Rioja – e acredite, com uns 3 ou 4 euros você compra ótimas garrafas por aqui!
Há realmente muitos bons vinhos na Rioja e a prova disso é que a partir daí todo o percurso do caminho de Santiago, que atravessa a região de um lado a outro, é toda dominada por “viñas”, o que melhora muito nossas noites, cada qual regada com um novo néctar dos deuses a ser provado, mas piora muito os nossos dias, que passam a ser percorridos quase sem sombras, já que essas plantações são todas
Logrono
A capital do vinho do Caminho. baixinhas margeando nossas trilhas.
Com trechos mais planos, as dores nos joelhos começaram a reduzir gradativamente e, à medida que isso ia acontecendo, dava margem para que nos déssemos conta de outras dores que passavam a nos incomodar, como nos pés e nas costas.
Essa sucessão de dores, longas distâncias com sol forte e sem sombras, paisagens bonitas, mas mais monótonas vão se tornando provas e nos mostrando que se vence cada dia de uma vez, numa nova batalha que nos endurece e fortalece cada vez mais. Naturalmente, começamos a desfrutar mais o prazer das pequenas coisas, a admirar as belezas mais singelas.
Ganhar uma garrafa de água ou um pingente de um desconhecido, ou mesmo se hospedar em um albergue de voluntários, que sobrevive à custa de doações e da dedicação de pessoas que estão lá simplesmente para proporcionar conforto e prover um abrigo e alimentação aos peregrinos são experiências que afloram nossos sentimentos de gratidão e solidariedade.
Passamos por simpáticos e minúsculos pueblos, alguns em festas – estamos em junho! – como Belorado, que estava todo mobilizado na preparação de uma festa temática medieval, ou San Juan de Ortega, onde provamos deliciosas amêndoas caramelizadas
Campo florido
Por que nem só de vinhedos vive a Rioja... belas paisagens sempre saltam ao caminho de um bom observador. em uma das banquinhas que animavam o centrinho local. Pegamos muito sol e calor até chegar, dias depois, a Agés, um pueblo que não tinha muita coisa além do albergue, a igrejinha local e sua guardiã, uma senhora de 92 anos que se dizia famosa em toda a Espanha por ter curado várias pessoas.
De Agés a Burgos, nossa 11ª etapa, que nos levaria até a primeira cidade desde Logroño, o tempo mudou e, após passarmos por Atapuerca, um pueblo onde foram encontrados alguns dos mais importantes fósseis do período paleolítico no mundo (parece que até visitas guiadas com visitas ao lugar onde viveu o Homo Antecesor há mais de um milhão de anos atrás), pegamos uma subida que nos levou direto para... a chuva. E sob muita água e um vento frio, fomos praticamente sem paradas até Burgos.
Por sorte, chegamos às principais cidades do caminho em finais de semana. O tempo melhorou à tarde e encontramos Burgos num agradabilíssimo clima de domingo à tarde, com apresentações de danças e músicas típicas, feiras de livros e muita gente nas ruas, passeando por praças, cafés, parques e calçadões na beira rio que cruza a cidade. A cidade deixou
uma ótima impressão e falaremos mais sobre ela no futuro, mas já vale adiantar sua principal atração: a Catedral. De enormes proporções, ela é uma das mais impressionantes que já vimos. E fica ao lado do albergue de peregrinos da cidade, que é um dos melhores de todo o caminho, com camas quase privadas (isso se você não tiver a nossa sorte e pegar uma das poucas que ficam no corredor de entrada de cada andar).
Os dias subsequentes reúnem o há de mais típico da Castilla: percursos longos, paisagens totalmente dominadas por plantações de cereais, trechos de dezenas de quilômetros praticamente sem uma sombra sequer, ou seja, o cenário ideal para colocar à prova toda a resistência que você acha que já adquiriu caminhando até aqui. Via de regra, começávamos muito bem os dias. Uma melhor condição física em um percurso plano, longo e sem grandes movimentações são o cenário ideal para a cabeça começar a ir longe, visitar os mais variados temas e assuntos que estão ali, mais evidentes ou escondidos. As reflexões se tornam mais frequentes, as conversas mais profundas. O dia passa rápido no começo.
Mas os quilômetros passam, o sol esquenta, o final
Cereais da castilha
Show de cores ao nascer do sol. não chega, a mochila pesa. No final dos dias, é preciso perseverança, paciência, determinação. Concentração. Ou distração. Eventualmente, um fone de ouvido no final da caminhada pode ser a força extra que você precisa para terminar o caminho. Ouvir David Coverdale começar a entoar “Here I go again”no meio de um caminho como esse pode ter um efeito mágico sobre sua mente e, consequentemente, sobre seu corpo!
Apesar de menos frequentes, também passamos por pueblos muito interessantes, como Castrojeriz, cidade em meia lua em volta de um morro, com origem romana (supostamente fundada por Júlio Cesar) e cheia de prédios e igrejas históricas, como as ruínas do interessante convento de San Antón, que chamam a atenção na beira do caminho que leva ao pueblo.
Também merece menção a região de Carrión de los Condes, onde há (em Villalcázar) a bela igreja templária de Santa María la Blanca, e onde nos hospedamos em um albergue de freiras que nos ofereceu um clima de casa de vó, com um conforto que não sentíamos há muito tempo. Na igreja do pueblo, assistimos a um ótimo concerto violão clássico, seguido da melhor missa que acompanhamos no caminho, com direito a uma benção
mais emocionante (e personalizada) aos peregrinos.
Mas talvez a parte mais interessante desta parte do caminho repleto de trechos na imensidão sem fim, onde céu e terra se encontram somente no infinito, seja a sensação de estar a sós consigo mesmo, com seus pensamentos. Idéias e lembranças vem e vão várias vezes. Angústias e arrependimentos começam a se dissolver. Você aceita melhor as coisas. Se perdoa mais. Assistir a um pôr do sol (depois das 22h) sem ver uma alma viva há quilômetros de distância, apenas com o som do vento e da natureza, com o corpo e a cabeça mais serenos após 20 ou 30km de peregrinação trazem uma incrível sensação de paz. E uma noite de sono profundo como o de uma criança.
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Arminda
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Sinto muita emoção em ler seus relatos! Gosto muito! Torcendo por vocês sempre!!! Muitos beijos