God bless them


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October 11th 2009
Published: October 12th 2009
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Fui dormir ontem decidida a acordar cedo. E acordei. Pouco depois das 8h00 já estava na rua, a caminho do Harlem. Queria assistir à famosa missa gospel na Abyssinian Baptist Church, na 138th street. Aos domingos, as missas são às 9h00 e às 11h00. Nos guias sobre Nova York, a recomendação é chegar ao menos uma hora antes. Mas essas dicas são sempre voltadas para quem viaja em períodos de alta estação. Foi o pensei, mas estava redondamente e longamente errada. Assim que me aproximei do endereço, vi uma fila que virava o quarteirão. A prioridade dos lugares é dada, muito justamente, aos membros da comunidade. Se sobrarem lugares, entram os visitantes - 99,9%!d(MISSING)eles, turistas. Não havia a mínima chance de obter uma vaga para a celebração que já ia começar. O jeito foi encarar duas horas e meia de espera na esperança de ter mais sorte logo mais. Acabei conhecendo duas brasileiras simpaticíssimas, Tânia e Debora. Ambas vieram passar um mês na cidade para estudar inglês. Papo vai, papo vem, chegou o momento esperado: a contagem de pessoas que poderiam entrar para a segunda - e última - celebração do dia. Dedos cruzados e ... na nossa vez ... ainda tinham vagas!!! Pra minha total surpresa, porém, um dos membros da igreja, todo elegante, assim que me viu pediu que eu saísse da fila. What???? Eu não poderia entrar porque estava de calça de plush (uma versão mais cool do bom e velho moleton). Não acreditei. O fato é que os fiéis realmente usam a sua melhor roupa no domingo para "encontrar" Deus. Todos os homens estão de terno e gravata, as mulheres cuidadosamente arrumadas, muitas de sapato de salto e chapéu. Até toleram que os turistas entrem de jeans e tênis, mas não o que consideram pijama, como a calça que eu estava vestindo.

Incentivada pelas minhas novas amigas, assim que encontrei uma brecha usei do jeitinho brasileiro, voltei pra fila e consegui entrar na igreja. Estava na escada, esperando pela autorização para subirmos ao segundo andar. Mas eis que um novo membro da igreja me pegou (e olha que eu nem estava de calças curtas), me mandou acompanhá-lo até a calçada e esperar num canto. Me sentindo humilhada, tudo que eu queria a essa altura era ir embora e voltar no próximo domingo, devidamente paramentada. Ele consultou um colega e decidiu me deixar entrar. Nem acreditei. Lá fui eu de novo pra fila, dessa vez como a última das últimas. Quando pensei que tudo estava resolvido, um outro integrante da Abyssinian, com uma gravata rosa pastel e um terno azul marinho impecável, olhou pra mim de cima abaixo e passou o maior sermão. Disse que não se vai vestida assim a uma igreja. Eu, que já estava me sentindo um lixo, respondi baixinho e sem jeito que tinham me autorizado a entrar, mas que ele tinha toda a razão. Ele retrucou dizendo "I know, I´m just saying".

Era o que faltava pra me derrubar de vez. Imóvel, em silêncio, com a mão na boca buscando esconder uma parte do rosto, comecei a chorar. Logo atrás de mim, um rapaz negro (como quase todos que fazem parte da comunidade) usava uma gravata borbolheta e tinha um celular numa mão e uma bíblia na outra. Pouco antes ele havia sorrido docemente para mim e eu quase me animei a puxar conversa, mas agora não tinha mais coragem de encará-lo, só queria esconder as lágrimas. Atrás dele, uma negra que havia me lembrado a cantora Paula Lima, com suas tranças estilosas, trajava um conjunto de saia e blazer marrom. Ela, que havia presenciado tudo, veio até mim e perguntou de onde eu era. De tão atordoada que eu estava, não entendi. Ela precisou perguntar mais uma vez para que eu conseguisse responder. Como viu que eu não parava de chorar, me abraçou e disse: "You´re welcome, God bless you". A fila começava a andar. Ela continuou segurando o meu braço, como uma mãe que ampara uma criança, e me deu um beijo. Comecei a chorar mais ainda. Eu não estava com raiva do homem que havia me repreendido. Pelo contrário. Achava que ele tinha toda razão e por isso mesmo me sentia tão mal. Ele estava me dando bronca porque de fato acredita que não é assim, tão informal, que se vai a uma igreja, a um lugar sagrado. Sempre fui contra esse tipo de imposição. Mas me senti culpada porque estava lá, invadindo o que é um santuário para ele, com o jeito displicente de quem só está em busca de algo exótico. Eu era uma turista idiota. Sim, considerei minha atitude desrespeitosa. Se no culto do Santo Daime que uma vez eu fui entrei de saia porque as mulheres não podem participar usando calça, por que hoje eu não estava seguindo os valores daquela igreja? Eu realmente era uma turista idiota. Estava lá como se estivesse fazendo um tour pelos principais pontos da cidade...

Ok, concordo que a minha reação foi exagerada. Mas também sei claramente que reagi assim porque ainda estou muito frágil em razão de tudo o que passei recentemente... A verdade é que ainda me sinto como se fosse de porcelana. Que posso quebrar a qualquer momento. Que estou oca, oca, oca, oca... A repreensão soou como um eco dentro de mim. Eu parecia um graveto seco arrastado pelo vento, sem a mínima chance de resistir. Tenho estado bem, mas sei que ainda estou próxima da fronteira que, por ter atravessado, me deixou devastada. Voltando à Abyssinian, a linda negra, de dentes iluminadamente brancos e amplo sorriso, me vendo desse jeito disse para eu não me deixar abater por situações como aquela. "Next time, just say thank you and keep walking. Be happy. We want you happy here. You´re welcome", ela fez questão de reafirmar. Tocada por receber seu carinho, mas ainda abalada, continuei chorando. Uma mulher de vestido e sapatos brancos, parecendo uma enfermeira, veio ao nosso encontro. Pela igreja haviam várias com roupas iguais à dela - são responsáveis pela organização da missa. Ao me ver daquele jeito, perguntou à negra linda (agora lembrei da Negra Li) o que tinha acontecido. Discretamente, minha guardiã cochichou no seu ouvido. A mulher gentilmente me conduziu a um lugar na primeira fila, enquanto o anjo que até então tinha estado literalmente ao meu lado se acomodou em outro canto.

A primeira metade da missa eu passei silenciosamente aos prantos. Fazia um esforço enorme para parar de chorar, mas simplesmente não conseguia. Quanto mais tentava, mais esgotada ficava. Meu corpo estava rígido, já sentia os ombros doloridos. Era como se, querendo não incomodar mais de jeito nenhum, eu evitasse me mexer. Num momento ainda no início da celebração, o pastor pediu para que os visitantes se levantassem. Como os demais, me ergui. Em seguida, ele disse para que os integrantes da comunidade nos dessem as boas-vindas. As duas moças ao meu lado e uma sentada atrás de mim me cumprimentaram e provavelmente ficaram intrigadas do por quê das lágrimas.

Pouco a pouco, fui me acalmando e apreciando a chance de estar lá. Para minha surpresa (e de todos os demais turistas), havia um convidado especial neste domingo. O ator Danny Glover, que participou de filmes como A Cor Púrpura, Máquina Mortífera e mais recentemente Ensaio sobre a Cegueira. Ele faria o principal sermão do dia. Importante ativista em prol da comunidade negra não só nos Estados Unidos, mas também na África e na América Latina, Glover fez um discurso politizado, mas apartidário. Com o argumento de que todos têm direito à vida, defendeu o sistema de saúde público, principal bandeira do atual governo americano, tema de grande discussão hoje no Congresso. Saudou Barack Obama pelo Prêmio Nobel da Paz que ele ganhou na sexta-feira, todos aplaudiram efusivamente (aliás, frequentemente os discursos são interrompidos com palmas toda vez que é dito algo que empolgue os presentes), mas lembrou que todo presidente, seja ele branco ou negro, tem de ser cobrado pelos seus atos e que Obama não pode deixar de ser cobrado também.

Senti que tive muita sorte de, depois de tudo, ter o privilégio de presenciar o discurso de Danny Glover. Já mais animada, acompanhei com palmas ritmadas, como os demais, as maravilhosas músicas cantadas pelo coral masculino gospel da igreja (todos devidamente de paletó escuro e gravatas listradas vermelhas... ai ai ai). Assim que a celebração acabou, vi minha protetora do outro lado acenando amplamente para mim. Pude ler pelo movimento dos seus lábios o que ela silenciosamente dizia. "Are you happy?" Com um taxativo movimento de cabeça respondi que sim e joguei vários beijos pra ela, que parou para me esperar. A abracei e agradeci. Ela perguntou meu nome. Eu perguntei o dela. Gloria. Sorri imaginando que não poderia haver nome mais perfeito para alguém que conheci numa situação como aquela, numa igreja. Mesmo não me considerando mais católoca (hoje não sigo religião alguma, apenas acredito em Deus), inevitavelmente lembrei de trechos de uma prece que nem sei mais como se chama. "Glória ao Pai todo poderso ... Todo poder e toda Glória ... Agora e para sempre ... Amém". Gloria trabalha como voluntária na Abyssinian. Se desculpou por estar apressada. Ela tinha de atender às pessoas da comunidade que precisam de ajuda financeira e, após a missa, buscam auxílio. A moça de branco também estava lá, à minha espera, para se desculpar. Disse que infelizmente nem todos compreendem que em outras religiões as pessoas são mais tolerantes com o jeito de se vestir. Frisei que eu é que fazia questão de pedir deculpas e que com certeza voltaria, devidamente vestida. E agradeci mais uma vez. Agradeci às duas. Gloria disse para eu não deixar de procurá-la quando voltar. E repetiu, categórica: "Be happy and keep walking, doesn´t matter what people say to you". God bless them. Amem.





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14th October 2009

God blessed you!
Oi Silvana, tudo bem? Eu lei a entry 'God bless them' com muito atencao e gostei muito o que voce escreveu. Esta experiencia foi muito rica para voce. Voce e uma pessoa muito sincera e sem pretencoes. Eu tenho certeza que 'God blessed you' Abracos, Benoit Robson manda beijos ;-)
15th October 2009

God blessed we!!!
Ben, que felicidade receber uma mensagem sua!!! Fiquei emocionada com o seu comentário... Sim, a minha experiência na Abyssinian foi muito rica e inesquecível. Com certeza saí de lá uma pessoa melhor. E como vocês estão? Já estão em Santa Catarina? Essa viagem de vocês também é uma experiência única!!! Espero um dia conseguir fazer algo parecido! Um beijo enorme pra você e outro pro Robson! ps. Estou espantada com o seu português!!!! você está escrevendo super bem!!!!!
15th October 2009

Isso sim é que é experiência de vida, não? Tenho certeza que, apesar de todos os "contratempos", você teve um domingo maravilhoso. E esse conselho "be happy e keep walking" tem tudo a ver contigo nesse momento, embora caiba a todos... Grande beijo.
16th October 2009

Blessed day
Enrica, vc tem toda razão. Foi uma mega experiência de vida. Um dia lin-dís-si-mo!!! Abençoado! And we keep walking!!! ;-) beijoooooo
30th October 2009

Lindo!
Sillllllllllllllllllllll, que lindo, lindo, lindo! Essa história é linda! É um conto, uma crônica, um curta! Ai, você escreve muuuuuuuuuuuuuuito bem. Amei, achei lindo! Se eu fosse cineasta faria um curto. Fiquei tocada com sua sinceridade, me emocionei. Sil, eu tb me sentia casca de ovo, sei exatamente o q vc tá falando... Mas passa, amiga, tenha fé, que passa... Você tem de mandar esse conto para algum concurso, para ser publicado, tá lindo! Bjs Aliás, já adotei o "just say thank you and keeping walking, be happy" no meu msn
3rd November 2009

Se não fosse vc...
Se não fosse vc, Chrys, esse blog não existiria, eu não estaria registrando minhas memórias em NY... Obrigada pela idéia, pelo incentivo, pela sua presença, dear... (Chrys, escrevendo esse texto, à noite, naquele dia, chorei mais um montão de novo... mas foi tão bom... esse episódio lavou minha alma...)
21st November 2009

A vida
Sil, querida. Faz tempo que não entro no seu blog. Então hoje tô tirando o atraso e lendo todos os posts que, pra mim, são novos. Que domingo, né? Quase chorei junto!!! Fiquei imaginando seus olhos estupidamente vermelhos - nem adianta parar de chorar, eles continuam denunciando o choro mesmo horas depois... Lindinha, força, vc tem que ser forte, tem que ter controle emocional - já dizia isso pra vc muito antes da deprê rolar. Antes da deprê vc já era emoção a flor da pele. Se cuida, bjs, saudades.
23rd November 2009

Estaca Zero
Roberta, continuo a mesma... a mesma manteiga derretida de sempre, a mesma sangue italiano de sempre, a mesma impulsiva e emotiva de sempre... Sei que preciso mudar, pra sofrer mesmo e ter menos problemas na vida, mas ainda não consegui... :-( Mas vou, sim, chegar lá!!!!! :-)
4th December 2009

oi manteiga!!!
querida, tudo bem? seu aniversário passou e eu passei batido... lembrei no dia, mas acabei atropelada pelos acontecimentos e não entrei na rede para escrever uma mensagem. e lógico que, depois, acabei esquecendo. A Cris disse que vc saiu com uma amiga e comemorou. fiquei contente. espero que esteja tudo bem com vc. bj grande, grande, tudo de bom!!!
26th December 2009

Tks
Roberta, obrigada!!! Sumi pq tive de mergulhar nos trabalhos finais. No dia seguinte a ultima aula já viajei para San Franciso. Vim passar o Natal e o Ano Novo aqui. E devo voltar a escrever por esses dias. Grande beijo.

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